domingo, 29 de janeiro de 2012

Descobrindo David Goodis!

Descobrindo David Goodis - por Luiz Rebinski Junior, do Digestivo Cultural




Com certa frequência a literatura traz boas novas. De tempo em tempo dou de cara com determinados autores que não conhecia, me apaixono e entro com tudo na obra do escritor. Vou a sebos e livrarias, compro tudo que posso do autor e vou pra casa me entorpecer com a "descoberta". Isso aconteceu recentemente com Raymond Carver, Harry Kemelman e João Gilberto Noll.

Esse é um dos grandes baratos da literatura. Quando tudo parece monótono e repetitivo, de repente, sem ser avisado, você leva um soco no estômago. Um livro com quarenta, cinquenta anos te faz cair na real, te mostra como você é babaca por achar que não vai mais encontrar nada que te emocione e que faça você terminar logo suas atividades só pra voltar a um livro que ficou na metade. Isso é ótimo porque te deixa ciente da própria mediocridade e mostra a força da história da literatura. Mas também porque é um ótimo indício de que você ainda está vivo para a literatura, não se cansou dela e ainda se emociona, é capaz de se inebriar com um livro.

Isso tudo pra dizer que acabo de me apaixonar novamente. Desta vez por um autor norte-americano que fez fama escrevendo livrinhos noir sobre a decadência do trabalhador americano. David Goodis é o nome dele. Goodis ficou na sombra de nomes mais famosos do romance policial, como Raymond Chandler e Dashiel Hammett. Um lugar propício para um escritor que tinha como matéria-prima os vencidos que transitavam lentamente na escuridão dos portos, que se escondiam de seu destino na névoa viciante dos bares mais mal frequentados.

Na orelha de um de seus livros, Goodis revela como encarava a literatura: "No começo eu queria escrever de modo solene e só abordar os grandes problemas, mas logo aprendi que o problema mais importante era comer, então eu me conformei em escrever o que os editores queriam". E assim Goodis se tornou um escritor de revistas pulp, aqueles magazines baratos que faziam sucesso até a primeira metade do século XX nos Estados Unidos. 

Escrevia qualquer coisa que lhe rendesse dinheiro e assim se tornou, por um período, roteirista de Hollywood. Queria ser Hemingway, mas acabou tendo um fim mais parecido com o de Fitzgerald. Morreu em decorrência de ferimentos recebidos em uma briga de rua, aos 49 anos. Exatamente como os brigões e arruaceiros que engrossam o caldo de sua literatura.

Goodis escreveu contos e novelas, mas são os seus romances que lhe deram certa notoriedade. O mais conhecido deles, certamente, é Atire no pianista (L&PM, 2005, 224 págs.), que foi filmado por Truffaut em 1960. É, de longe, o filme mais experimental do mestre da Nouvelle Vague. Um filme muito parecido, por sinal, com a estreia de Godard, Acossado, que tem roteiro do próprio Truffaut. Em ambos os filmes a câmera corre rápido, há cortes abruptos e a narrativa não é linear. Truffaut, depois desse filme, nunca mais seria tão experimental no modo de filmar, deixou esse papel para o colega e, mais tarde, desafeto Godard.

No livro de Goodis, Eddie, um pianista de taverna, é envolvido em uma trama obscura quando resolve ajudar um irmão picareta a escapar de dois mafiosos. O livro começa com uma perseguição veloz e empolgante, com Turley, o irmão do pianista, sendo cassado como rato entre as caixas de cerveja do bar de Harriet, onde Eddie toca, pelos bandidões Morris e Feather.

Eddie, assim como vários outros personagens de Goodis, é um tipo de fracassado que já perdeu totalmente a esperança: tem um ar resignado que não lhe deixa fazer mais do que aquilo que já está acostumado. Não quer mais nada da vida, não espera compaixão, muito menos amor, de ninguém. Está plenamente satisfeito com sua condição, por pior que seja. 

Mas essa desesperança tem explicação. Eddie outrora era Edward Webster Lynn, um promissor concertista de Nova York que vê sua carreira desmoronar quando descobre que sua mulher, Teresa, vendeu o próprio corpo em troca de um contrato com um famoso agenciador de pianistas. A carreira de Edward deslancha com o contrato, mas sua vida acaba. A mulher, envergonhada com o que fez, comete suicídio. Edward então cai na vida, vira Eddie, o pianista de pocilgas, e tenta esquecer não só o passado, mas também o presente.

O mais incrível na literatura de Goodis é que ele consegue empreender uma linguagem poética mesmo sendo simples e bastante direto em seu texto, como no trecho em que narra o suicídio da mulher: "Edward fez meia-volta, atravessou a sala correndo, e entrou no dormitório. Teresa estava no parapeito da janela. Ele pulou para frente e tentou agarrá-la, mas nada havia para agarrar. Havia apenas o ar frio que entrava pela janela". 


Goodis se utiliza do passado negro de Eddie para dar mais credibilidade ao estoicismo do personagem. Eddie é um homem acabado, que não pensa muito antes de tomar uma decisão. Qualquer coisa que lhe aconteça será algo "inevitável".

Goodis usou recurso parecido em outro romance. Em A garota de Cassidy (L&PM, 2006, 224 págs.), o personagem central, Jim Cassidy, é um ex-piloto de avião que desiste da profissão e torna-se estivador após se envolver em um acidente aéreo. Mesmo não sendo culpado pelo acidente, é atormentado pela consciência e resolve fugir. Os personagens de Goodis estão quase sempre em fuga. Seja do passado ou do presente. E o melhor paliativo que encontram é a bebida. Os livros de Goodis são altamente alcoólicos, o uísque verte das páginas como uma fonte de água mineral.

Goodis é daqueles autores que não te deixam em paz até que você se liberte por completo dele. Para isso, é preciso chegar à última linha do livro. Li A garota de Cassidy em meio a uma gripe forte, daquelas que te deixam anuviado. Quando largava o livro e adormecia, era comum sonhar com Cassidy. Via-o em sua fuga, imaginava-o bebendo no Lundy's Place e me sentia deprimido quando despertava. Não sei se estou supervalorizando Goodis, só sei que a literatura dele me pegou em cheio, me atordoou.

Quando se procura sobre Goodis, é comum encontrar textos que o relacionam com Bukowski. Esqueça! Não há nada de similar. Personagens beberrões encontramos em toda literatura, não só na americana. Os personagens de Goodis têm uma força diferente dos de Bukowski. Suas personalidades são mais rijas, são pessoas intransponíveis, mesmo que façam parte da ala dos vencidos, dos fracos. Os personagens de Bukowski são muito mais caricatos, nos convencem de outra forma.

As tramas de Goodis também não seguem a cartilha de autores clássicos do romance policial. 

A trama, em seus livros, é importante, claro, há sempre aquele suspense pairando no ar, mas não é nunca um quebra-cabeça. A trama está sempre a serviço do personagem, nunca o contrário. Quando se termina um livro de Goodis, lembramos de Cassidy, Eddie ou Hart, o personagem de Sexta-feira negra. A história vem acoplada ao personagem. Por isso que o adjetivo "noir" é muito mais apropriado do que o termo "policial" quando se fala em David Goodis. As tramas do escritor são mais muito mais negras do que policialescas.

David Goodis escreveu dezenove livros. Apenas quatro foram publicados por aqui (Atire no pianista, A lua na sarjeta, A garota de Cassidy e Sexta-feira negra), todos pela L&PM. Em um país em que Henry Chinaski se deu tão bem, os beberrões malditos de Goodis certamente mereciam melhor sorte.

 
Para ir além








Curitiba, 24/3/2010

Link:

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Filme Noir!

O Filme “Noir” - por Emerson F.C. Paubel


Scarlet Street
O filme noir (lê-se nuá) é um dos gêneros cinematográficos “de época” mais admirados e populares do final do século vinte, apesar de o termo noir ser desconhecido à época na qual os filmes foram produzidos. 

Basicamente, ele significa “filme escuro” – uma variação do termo francês do século 19 “novela escura” – referindo-se a qualquer número de dramas policiais carregados psicologicamente dos anos 1940-50.   
Na época em que foram feitos, os filmes eram relacionados simplesmente a gângsteres ou mistérios, sem qualidades aparentes separando-os de outras produções. 

Os críticos franceses originalmente usaram a designação film noir para definir filmes dos anos 1930, tais como La Chienne (Jean Renoir) – mais tarde refeito em Hollywood por Fritz Lang sob o nome de Scarlet Street; porém, ele se aplicava igualmente bem a uma particular gama de filmes americanos e foi aceito pela crítica nos EUA a partir do final dos anos 50 para definir um tipo de gênero – especificamente um sub-gênero do filme policial.

Hoje, há verdadeiros festivais de filmes noir na programação dos cinemas e redes de TV, uma grande ironia para um gênero que foi definido com um termo que os produtores e críticos da época provavelmente não teriam compreendido.  
 
O desenvolvimento do filme noir foi gradual, chegando algum tempo após o ciclo de filmes clássicos de gângsteres em Hollywood. 

Os filmes policiais dos anos 1920-30 tinham seu lado psicológico – por exemplo, The Last Mile, Sabotage e The Petrified Forest – nos quais a motivação dos criminosos era tão fascinante quanto seus crimes.

Mesmo The Roaring Twenties, com James Cagney, no final do ciclo de filmes de gângsteres da Warner Bros, apresentou um anti-herói cuja psicologia o levou a aceitar a morte – após sobreviver à Primeira Guerra Mundial, aos primeiros conflitos entre gângsteres e ao fim da “Proibição” (período no qual o governo americano proibiu a comercialização de bebidas alcoólicas). 

Alguns outros poucos filmes, em especial M (Fritz Lang), estrelando o então jovem Peter Lorre, focava mais na psicologia da mente criminosa do que na história da caçada do criminoso de uma criança. 

Contudo, estes trabalhos relativamente sofisticados foram exceção mais do que regra e a maioria dos filmes policiais dos anos 30 foram, na melhor das hipóteses, tiroteios bem feitos amarrados a material policial extravagante.


The Big Sleep
 O filme noir como gênero definido começou no início dos anos 40, com filmes que lidavam com o lado sinistro de uma psicologia idêntica entre perseguidores e criminosos, a ponto de em The Big Sleep (1946), de Howard Hawks, a seqüência de crimes que suportam a trama ser difícil de discernir. 

Por outro lado, o primeiro filme genuinamente noir, segundo muitos críticos, foi I Wake up Screaming, de H. Bruce Humberstone, baseado numa novela de Steve Fisher e estrelando Victor Mature, Betty Grable e Laird Cregar. 

O título pode dar calafrios na espinha, mas os elementos verdadeiramente noir residem no sadismo pesado do personagem de Cregar, um policial obsessivo e homicida que atormenta os dois suspeitos (Mature, Grable) pelo assassinato de uma atriz. 

O filme conta a história do crime e da investigação, mas sua verdadeira força está na habilidade em fazer com que o espectador se sinta tão ameaçado quanto os dois suspeitos – eles se encontram encurralados numa intricada teia legal e psicológica tecida pelo policial.

O espectador sente cada choque, à medida que os fios da teia são puxados bruscamente e tensionados fortemente, assim como os próprios personagens. Torna-se claro após alguns minutos de filme que estamos na presença de algo perigoso e doentio; mesmo nos dias de hoje, assistir a esse filme é uma experiência indescritível. 

Apesar de ninguém tentar rivalizar conscientemente com I Wake Up Screaming, ele foi padronizado filme noir padrão – a selva de pedra habitada por personagens que parecem perdidos ou feridos psicologicamente e cercados por armadilhas que são mais imaginárias do que reais, com a lei e a justiça sempre excedendo seus limites no sentido de destruí-los. I Wake Up Screaming acrescenta o elemento necessário para representar a lei como uma força sinistra e ardilosa simbolizando a injustiça.  
 
The Maltese Falcon (1941), de John Huston, é também freqüentemente citado como um dos pioneiros do filme noir, mas sua psicologia é mais fraca que a do filme de Humberstone. 

Sam Spade, personagem vivido por Humphrey Bogart, entretanto se movimenta por um mundo reconhecidamente noir, repleto de homens e mulheres obsessivos com temperamento homicida, policiais cuja dedicação beira ao sadismo, mulheres cuja sexualidade é pessimamente controlada – e utilizada conscientemente para fins de destruição – e, no centro de tudo, um herói que luta constantemente contra seus piores impulsos. 

Um outro filme do mesmo período que parece definir o nascimento do gênero foi This Gun for Hire (1941), de Frank Tuttle, baseado em “A Gun for Sale”, de Graham Greene, e estrelando Alan Ladd, Veronica Lake e o onipresente Laird Cregar. 

A estória de um matador de aluguel era fora do convencional para os padrões de Hollywood, mas Ladd trouxe tanta humanidade e desespero para seu personagem que as platéias acharam irresistível – e essa mistura de psicose e honradez tornou-o o mais extraordinário anti-herói de Hollywood, contrastando bem com o personagem patético e caprichoso de Laird Cregar e o empresário traidor de Tully Marshall. As origens do filme noir durante esta época, tendo como fundo o início da Segunda Guerra Mundial, não foram uma mera coincidência. 

A chegada da Guerra à Europa degradou o humor do povo americano tal como a Grande Depressão, em todos exceto nos piores dias, não tinha feito. Os EUA sobreviveram à Depressão, mas subitamente o mundo parecia estar se tornando mais ameaçador do que tinha sido durante aqueles dias agitados – os líderes da Alemanha democraticamente eleitos planejavam conquistar a Europa e o extermínio de milhões, e os outros líderes comparáveis na cena internacional eram os ditadores da URSS e Japão; Inglaterra e França estavam paralisados; e os EUA, cuja participação prévia na política internacional durante a Primeira Guerra Mundial terminou em desastre para o Presidente e o Congresso, estavam incapazes de agir. 


Para tornar pior as coisas, havia o fato do início da Segunda Guerra coincidir com o fim dos últimos vestígios do desemprego da Grande Depressão. O filme noir foi uma reação ao mundo que se desenhava em 1941. Na época, os filmes estavam mais preparados para um novo tipo de herói e um novo leque de personagens. A imposição do Código de Produção (Production Code), censurando o conteúdo dos filmes a partir de 1933, teve o efeito de limpar e clarificar as superfícies externas dos personagens e das tramas, mais do que seus autores, atores e diretores poderiam ter gostado. 

Atores como James Cagney, Humphrey Bogart e mesmo John Wayne (dê uma olhada em sua representação como Ringo Kid em Stagecoach) tinham trabalhado para trazer algum lado obscuro para sua representação, mas somente de uma maneira muito limitada. Geralmente, os filmes se tornaram menos abrangentes após oito anos de censura auto-imposta. 

Quando o filme noir apareceu durante o início dos anos 40, mostrando lados do comportamento humano anteriormente ignorados, o público respondeu mais entusiasticamente. A Guerra também ajudou em outro aspecto – muitos dos trabalhos que se seguiram não teriam passado pelos censores nos anos 30, mas após a entrada da América na guerra, os padrões se perderam à medida que a indústria cinematográfica reconheceu que o mundo era um lugar mais violento e perigoso. E uma nova geração de escritores chegou em Hollywood para se aproveitar disso. 

O trabalho do autor Cornell Woolrich, em particular, serviu como ponto de referência para estes dramas psicológicos obscuros. 

Uma pessoa profundamente atormentada, porém um escritor talentoso que sofria de depressão crônica e uma obsessão por sua própria mãe e que era homossexual, Woolrich foi um dos mais populares escritores de ficção policial no início dos anos 40; seu trabalho foi extensamente publicado em revistas assim como em novelas. 

Sua estória "Black Friday" e novellas como "Phantom Lady" e "The Night Has A Thousand Eyes" tornaram-se a base para muitos filmes importantes durante os primeiros anos daquela década; além disso, ele criou o texto que subseqüentemente foi adaptado ao cinema como Rear Window, de Alfred Hitchcock. 


Kiss of Death
Ao nível mais popular, Dashiel Hammett (The Falcon Maltese) e Raymond Chandler (The Big Sleep, Farewell my Lovely) estavam em demanda como nunca e nos anos 40 eles finalmente viram as personalidades sinistras de seus personagens levadas às telas razoavelmente intactas. 

O filme noir foi o primeiro gênero no qual o perigo com o qual os personagens se defrontavam era mais psicológico do que físico. 

 A platéia parecia responder bem a esse fenômeno, e o sucesso de This Gun for Hire e I Wake up Screaming, em particular, anunciou uma era de dramas policiais sinistros e mistérios habitados por personagens estranhos e obcecados: Phantom Lady, Deadline At Dawn, The Woman In the Window, Scarlet Street, Murder My Sweet, The Lost Weekend, The Strange Love of Martha Ivers, Pitfall, Dead Reckoning, The Dark Corner, Edge of Doom, Force Of Evil, Kiss of Death, The Asphalt Jungle, They Live By Night, D.O.A

Os títulos por si só falam a respeito desses filmes.  

Uma típica trama noir poderia envolver uma pessoa que comete um pequeno e aparente sem importância ato de indiscrição – estando bêbada, fazendo um favor para um estranho ou falhando ao realizar uma tarefa para um estranho – e acaba se encontrando num dilema de vida ou morte. 

Em Dark Corner, Mark Stevens se vê perseguido, agredido e preso por um detetive particular por um assassinato que não cometeu, tudo a pedido de um homem (Clifton Webb) que mal sabe ou se lembra de sua própria motivação pervertida por vingança.  Em Deadline At Dawn, o único filme dirigido pelo renomado diretor de teatro Harold Clurman, o marinheiro Bill Williams, durante uma visita a Nova Iorque, acorda após um porre e descobre que a mulher com a qual estava – e que estava tentando roubá-lo  - foi estrangulada e ele pode ficar comprometido por vários indícios e testemunhas.  

Em Pitfall, Dick Powell, investigador de uma companhia de seguros, dá atenção para uma mulher aparentemente carente e vulnerável (Lizabeth Scott) e isto o envolve em uma fraude, uma chantagem e um assassinato. Finalmente, em D.O.A., talvez o mais sinistro dos filmes noir, o empresário Edmond O´Brien percebe que lhe foi dado um veneno letal, de efeito prolongado, que o matará em 24 horas e ele gasta este tempo tentando descobrir o porquê do envenenamento; ao final, descobre que foi assassinado somente porque documentou uma conta de venda para um homem que nunca vira antes, o que tornara-o uma testemunha em potencial num caso de fraude e assassinato. 


Laura
Em outros exemplos do gênero, os personagens são tudo, menos inocentes. 

O filme Laura (1944), de Otto Preminger, por exemplo, o qual também é um dos mais românticos noir feitos, todos os envolvidos na trama (exceto por um mordomo) são potenciais suspeitos do assassinato e têm motivos para tanto.  

Mesmo o policial, interpretado por Dana Andrews, está tão absorvido por seu trabalho que ele não percebe a selvageria e o sadismo que movem suas ações e motivações. Andrews, Preminger, e a estrela do filme, Gene Tierney explorariam novamente esse personagem em 1950, no filme Where The Sidewalk Ends, no qual Andrews representa um policial que inadvertidamente se envolve num assassinato – ironicamente, um dos poucos crimes que ele é acusado e que não é culpado! 

Um outro exemplo brilhante do gênero é Force of Evil (1948), de Abraham Polonsky, o único que não nasceu em Hollywood.

Filme de uma produtora independente chamada Enterprise Studios, em Force of Evil estrelava John Garfield como um empresário bem-sucedido de Wall Street tentando comandar um sindicato que planeja quebrar o “jogo-do-bicho” local e transformá-lo em uma loteria legal, mas, para isso, ele precisa arruinar a vida de seu irmão – com o qual está brigado – , um pequeno “bicheiro”. Garfield é destruído quando ele tenta salvar o bem-estar financeiro de seu irmão, o que custa a vida deste (brilhantemente interpretado por Thomas Gomez) no processo.

A Força da Maldade mencionada no título original é o capitalismo e a ganância do sistema. Em The Asphalt Jungle (1950), de John Huston, todos são culpados e ou são pegos ou mortos – saber disso não diminui a importância do filme, pois o modo como eles são pegos ou mortos é do que realmente trata o filme.  

Mesmo Samuel Goldwyn, conhecido por fazer filmes para atingir o maior público possível (The Best Years of Our Lives, Hans Christian Andersen, etc.), produziu um filme noir, Edge of Doom, o qual provou ser um dos mais sombrios e bizarros exemplos do gênero. Farley Granger, que trabalharia muito melhor em Side Street, interpreta um garoto pobre de Boston que mata acidentalmente um padre e passa o resto do filme tentando escapar de sua responsabilidade e sua perseguição por outro padre (Dana Andrews). 

A importância do filme noir diminuiu durante os anos 50, algum tempo após o final da Guerra Mundial que deu origem ao seu nascimento. A longevidade do gênero, contudo, pode ser atribuída primeiro à sua flexibilidade – ao contrário dos westerns, os filmes policiais nunca saem de moda e as diferentes manifestações do crime oferecem uma rica seleção de matéria-prima. 

Ao final dos anos 40, à medida que a delinqüência juvenil estava se tornando um assunto prioritário, a Universal produziu City Across The River (basedo no best seller “The Amboy Dukes”, de Irving Shulman), sobre gangues de rua na região de Brownsville do Brooklyn. 

E nos anos 50, mesmo o “Terror Vermelho” (a paranóia anti-comunista) manifestou-se no filme noir, em um dos melhores thrillers policiais da década, Pickup On South Street (1953), de Samuel Fuller, no qual um batedor de carteiras (Richard Widmark) se encontra metido com espiões inimigos e agentes do F.B.I quando ele rouba a bolsa de uma mulher que contém um valioso pedaço de microfilme - Thelma Ritter, a qual, apesar da produção "B", recebeu uma indicação ao Oscar. 

O ciclo do film noir deu origem a várias partituras musicais marcantes, compostas por maestros como David Raksin (Laura) e, principalmente, o lendário Miklos Rozsa (Double Indemnity, The Lost Weekend,  Naked City).  

O interesse pelo gênero somente diminuiu quando a televisão acabou com o mercado deste tipo de baixa produção, e o “tiro de misericórdia” foi dado quando o filme colorido se tornou padrão em Hollywood. Era muito difícil, senão impossível, filmar estórias da natureza do noir em cores sem o ambiente sinistro que a fotografia em preto-e-branco propiciava – a cor, tal como usada naqueles dias, tirava a concentração e, por questão de necessidade, criava imagens muito brilhantes. O filme noir, contudo, não desapareceu inteiramente como gênero e campo de estudo. 

Na França, diretores como Jean-Pierre Melville (Bob Le Flambeur) e Jean-Luc Godard (Breathless) foram profundamente influenciados pelo gênero americano. Jules Dassin também fez um clássico filme noir, Riffifi. Ocasionalmente, um filme como Cry Terror de Andrew e Virginia Stone ou Key Witness, de Phil Karlson – ambos datando do começo dos anos 60 – emergiriam de Hollywood, mas foram apenas uma exceção e nenhum atingiu o sucesso esperado, de modo a trazer um interesse maior.  
 
Como a qualidade dos filmes de Hollywood piorou, cinéfilos e estudantes de cinema crescentemente se voltaram aos gêneros mais antigos e descobriram o filme noir. Além disso, a total fixação americana pelo filme noir data a partir dos anos 60, à medida que expectadores e estudantes – procurando por algo mais do que A Noviça Rebelde ou mesmo a série de filmes de James Bond poderiam oferecer – começaram a levar a sério estes velhos filmes policiais e estudando-os em modos que teriam surpreendido seus produtores.

Nos anos 70 e 80, qualquer um podia encontrar a influência do filme noir em bons mistérios como The Midnight Man (1974), de Burt Lancaster e Roland Kibbee, Blade Runner (1982), de Riddley Scott e A Honra do Poderoso Prizzi (1985), de John Huston; nos anos 90, filmes como Reservoir Dogs (1992), de Quentin Tarantino, ajudaram a preservar o gênero.

O Que é Afinal um Filme Noir?

 
Há sete elementos de um filme noir que Raymond Borde e Etienne Chauteton apontaram em Panorama du Film Americain (extraído e traduzido em Film Noir Reader, editado por Alain Silver e James Ursini). São eles:
 
um crime;
a perspectiva dos criminosos, não da polícia;
uma visão invertida das tradicionais fontes de autoridade, tal como a corrupção policial;
alianças e lealdades instáveis;
a “femme fatale” (fêmea fatal): a mulher que causa a ruína e/ou morte de um bom homem;
violência bruta;
motivação e mudanças em complôs bizarros. 


Paul Schrader observa a dificuldade em definir film noir em Film Comment (também reimpresso em Film Noir Reader), porém o limita em um período específico – de  The Maltese Falcon (1941) até Touch of Evil (1958). Ele argumenta que o noir é literalmente preto. Cenas noturnas, iluminação de alto contraste e sombras fazem parte do estilo noir. Além disso, o filme noir trabalha com tempo não-linear, disjuntivo. 

Apesar destas duas tentativas de definir o filme noir sejam úteis, elas igualmente são limitadas. A diferença entre filme noir e policial, segundo Borde e Chaumeton, é muito pequena. Filmes como The Naked City e Crossfire foram estruturadas a partir de uma perspectiva do policial, ainda que não haja limites para a violência bruta e a perversão dos assassinatos em Crossfire. Borde e Chaumeton também negligenciam o elemento de transgressão moral/perversão que torna um noir verdadeiramente obscuro.

Além disso, o argumento de Schrader que o gênero noir está morto é prematuro. Filmes recentes como Bound, Dark City e virtualmente qualquer coisa de John Dahl não são meramente homenagens ao filme noir, mas versões contemporâneas deste. A seção “Film Noir” do Internet Movie Database lista filmes de 1927 (The Underworld) até o presente. Uma estatística destes indica um pico primário de 1945 até 1951, e outro pico de 1951 até cerca de 1958 com um ressurgimento nos anos 1990. 

Entretanto, Schrader está correto ao afirmar que definir o noir é quase impossível. Quantos elementos noir são necessários para se fazer um noir? Um? Três? Sete? Então, um noir pode ter apenas um único elemento, enquanto que outro filme que possua três não seja considerado um noir

O que segue é uma outra tentativa de preencher a lacuna de definições do filme noir em complemento às definições dadas acima: 

1.      Perversão/transgressão moral. Um grande exemplo é William Bendix usando termos afetuosos como “docinho” e “querido” enquanto tortura Alan Ladd, em The Glass Key

2.      Destino. Freqüentemente, os protagonistas do noir se metem em encrenca por causa de traços de personalidade (Double Indemnity e Criss Cross) ou circunstâncias além do seu controle (Detour).

3.      Traição/Ilusão. Todas as relações humanas estão sob risco no mundo noir – a relação entre cônjuges (Pitfall, Woman in the Window), entre patrões e empregados (Phantom Lady), entre clientes e investigadores particulares (The Maltese Falcon, The Big Sleep), entre amantes (Criss Cross) e mesmo entre pais e filhos (Mildred Pierce). Toda relação presumidamente baseada na verdade e mesmo no amor tem o potencial de se transformar em traição por dinheiro ou sexo, ou ambos.

Link:

Romance Policial Noir deixa um 'longo rastro de sangue no meio literário'!

Um Longo Rastro de Sangue No Meio Literário  - por Douglas Cometti, do Scream $ Yell, 10/06/2003, 



Mesmo com um começo modesto, em revistas feitas do mais vagabundo papel, o romance policial cresceu e se firmou como um dos mais populares gêneros literários do século XX e, ao que tudo indica, vai atravessar o próximo século da mesma forma que passou pelo primeiro, enfrentando de bandidos sádicos e inescrupulosos a críticos e intelectuais que insistem e em tratá-lo como subproduto cultural.
 
Surgido no começo do século XX, o romance policial ou, como muitos preferem, romance noir, sempre ocupou um lugar menor no meio literário. Considerado pela elite intelectual, desde seu surgimento, como lixo cultural, literatura barata, desprovida de elementos que levassem à reflexão do indivíduo, criada apenas para o consumo rápido e distração de pessoas "incultas", esse tipo de ficção, ainda hoje, perambula pelos guetos da história, lugar esse, aliás, que sempre lhe foi muito familiar.
 
Muitas vezes confundido com romance de espionagem, terror ou mistério e chamado genericamente de 'Pulp Fiction', o noir se difere dos demais gêneros graças a uma série de regras de estilo que, ao mesmo tempo, lhe impõe restrições e o tornam inconfundível. O escritor Marcos Reis, certa vez, definiu bem os limites do noir ao observar que basta se colocar o interesse de um país na trama para esta se tornar uma história de espionagem; se algo sobrenatural permeia a narrativa então temos uma história de mistério.



Quanto ao termo Pulp Fiction, este se refere mais ao tipo de papel usado para impressão de livros baratos, do que a um estilo propriamente dito, e ai entram até as açucaradas histórias de Sabrina e Julia. O tema tratado pelo noir é, invariavelmente, o mundo do crime, com seus guetos sujos, habitados por seres execráveis, detetives violentos e policiais decadentes, tipos femininos ambíguos, enfim, um apanhado de personagens imorais envolvidos em tramas complexas, num ambiente realista e sombrio.
 
Há quem defenda Conan Doyle como primeiro escritor policial da história. O criador de Sherlock Holmes, ao menos, definiu algumas diretrizes para o gênero, mas uma rápida comparação entre o pomposo detetive britânico e figuras como Sam Spade, de Dashiell Hammett e Philip Marlowe, de Raymond Chandler, nos mostra a distância entre esses personagens e os mundos, ou submundos, nos quais os mesmos atuavam. 

Sherlock Holmes era um aristocrata, extremamente inteligente e culto, que desvendava seus casos de forma sutil, mesmo em uma Londres sombria e misteriosa. 
 
Já o tipo de detetive que consolidou o noir possui características que estão mais para defeitos que qualidades, e são esses defeitos que os tornam atraentes ao público. Numa edição nacional de "O Falcão Maltês", publicada pela Editora Abril Cultural, em 1984, foi incluído o seguinte subtítulo: Sam Spade: um detetive durão e amoral. 

Isso nos da uma pista do tipo de personagem que vamos encontrar ao longo da história.
 
O gênero, tal como é conhecido hoje, teve, sua mais provável origem, com o escritor Dashiell Hammett. São dele os primeiros contos publicados a partir de 1922, pela revista "Black Mask", revista esta, que se tornou o principal veículo de divulgação do romance policial e abrigou, não só Hammett, mas uma considerável parcela de escritores que não encontravam lugar nas editoras da época. 

Os contos do detetive anônimo, que trabalhava para Continental Agency, baseada em San Francisco, foram os primeiros a se tornar conhecidos do público e dar origem à expressão “Hard-boiled”, utilizada por críticos para definir os tipos rudes criados pelo escritor.

Mais do que simples peculiaridade, a violência nos romances policiais estava ligada ao clima da época de seu surgimento, um pós-guerra, onde o crime organizado crescia a olhos vistos nas grandes cidades americanas. 

Também foi a violência, uma das responsáveis pela marginalização do gênero aos olhos da elite cultural daquele momento, e pelo seu sucesso entre as classes baixas. O início do noir vem na esteira da alfabetização em massa nos EUA e da popularização da imprensa. Isso, de certa forma, contribuiu para uma outra característica, grande parte das histórias policiais eram contos, originalmente publicados em revistas baratas, como a já citada Black Mask e posteriormente editados em livros.
 
Um dos feitos de Dashiel Hammet, que foi seguido à risca por seus predecessores, foi ter a percepção de criar personagens que gerasse identificação com o tipo médio americano.

Logo o que temos em suas histórias, são detetives particulares a beira do fracasso, duros e corroídos pelo tempo e pelas desventuras da profissão, quase alcoólatras e, geralmente, violentos, mas sempre conservando um certo charme e uma capacidade incrível de tomar para si o controle da situação, por mais adversa que fosse. 

Personagens assim eram sucesso garantido em uma sociedade machista, que tinha a figura masculina como mola propulsora para o progresso. Personagens com uma obstinação romântica pela justiça, incorruptíveis (nem sempre), sem uma formação erudita, mas pragmáticos, com experiência adquirida nas ruas.
 
Seguindo o raciocínio machista, o papel ocupado pelas mulheres nesse tipo de ficção  possui conotações diferentes, muitas vezes opostas, ao do tipo masculino. O estereotipo da fragilidade feminina é explorado ao máximo pelo gênero com nuances que vão da total inocência ao puro maquiavelismo, dando origem à figura da mulher fatal. Elas são o fio condutor de muitas histórias. Dois bons exemplos são "O Falcão Maltes" e "O Destino Bate à Sua Porta", clássicos irrefutáveis da literatura noir, onde as mulheres são as responsáveis pelas reviravoltas na trama e aparecem como o calcanhar de Aquiles dos protagonistas. 
 
Os escritores de romance policial também sempre se preocuparam com a forma como descreviam lugares e situações. Nada pode escapar ao leitor e, ao mesmo tempo, não é permitido devaneios ou pensamentos intermináveis. Tão importante quanto a trama, o ritmo da mesma define uma boa obra policial. Para completar, a criatividade e peculiaridade de cada escritor confere a originalidade de seus personagens, como maneira de falar, cacoetes, vícios e fraquezas. 



O uso da linguagem coloquial, com boa dose de gírias, é outra marca do noir.
 
Essa estrutura, na qual nasceu e se desenvolveu o romance policial, chamou a atenção dos estúdios de cinema americanos, que se deparavam com roteiros praticamente prontos. Em pouco tempo um novo nicho foi conquistado, das páginas de revistas vagabundas para o cinema, consolidando o gênero, mesmo que ainda visto de soslaio por muita gente. Ai brilharam figuras como o galã Humphrey Bogart e o esquisito Peter Lorre, este último feito sob medida para o romance policial devido sua origens no cinema expressionista alemão e ao seu tipo físico peculiar.
 
Desde de sua consolidação no começo do século XX, até os dias de hoje, a ficção policial passou por várias alterações em seu contexto, adequando-se a cada época e provando sua consistência e longevidade. A literatura noir ganhou admiradores e representantes de peso fora do eixo Estados Unidos – Inglaterra, sua fama de subgênero foi, até certo ponto, redimida e, ainda hoje, o policial desempenha um importante papel na tarefa de arrebanhar novos adeptos ao hábito da leitura. De Dashiell Hammett a James Ellroy muita coisa mudou, o mundo do crime mudou, os detetives mudaram, mas não sumiram. Seus principais cronistas também não.
 
*Imagem de abertura - Homenagem a Dashiel Hammet - Oléo sobre tela, 92 x 73 cm, 1982. (Miquél Vita)

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http://www.screamyell.com.br/literatura/noir.htm